domingo, 20 de janeiro de 2008

a criação do mundo

Os Seres Celestiais rebentam de riso no Gabinete de Projectos,
Pois um deles desenhou um ouriço,
Outro, para não ficar atrás, uma cantora soprano –
Pestanas, seios, anéis de cabelo, muitos anéis.

É um excelente divertimento no oceano da energia espumante,
Entre estalos e descargas prenunciadoras da electricidade.
Borbulham baldes de proto-tinta, proto-pincéis trabalham,
Um vórtice potente de quase-galáxias por trás de quase-janelas,
E uma claridade pura, livre de nuvens.

Sopram nas conchas, dão cambalhotas no quase-espaço,
No seu país dos arquétipos, no sétimo céu.
A Terra está quase pronta, os seus rios brilham,
As selvas crescem, cada uma das criações
Aguarda o seu nome, um raio passeia-se de longe,
As manadas nos prados não levantam a cabeça.

Desabrocham as cidades, as ruas estreitas,
O penico despejado pela janela, a roupa interior.
E logo as auto-estradas para o aeroporto,
A estátua no cruzamento, o parque, o estádio
Para milhares que se levantam e gritam: golo!

E como se fosse pouco descobrir
O comprimento, a largura e a altura,
Dois vezes dois e a força da gravidade, ainda surgem
As cuecas de renda, o hipopótamo, o bico do tocano,
O cinto da castidade com horríveis dentes eriçados,
O peixe-martelo, o capacete achatado,
E por fim, o tempo, quer dizer, a divisão no que será e foi.

Glória, glória, cantam as coisas existentes.
Ao ouvi-las, Mozart senta-se ao pianoforte
E compõe a música, que já estava pronta
Antes de ele ter nascido em Salsburgo.

Se pelo menos tudo isto perdurasse. Mas não.
Muda, passa, rodopia numa bolinha de sabão
Junto com a invocação dos Seres Celestiais para os mortais:

“Ó geração deturpada, como não ter piedade de vós!
Os vossos trapos coloridos, as vossas danças
Aparentemente devassas, mas apenas deploráveis,
Os espelhos onde fica o rosto com brincos,
As pálpebras pintadas, pestanas ilusórias.
Como pode não ter-se nada mais além da festa amorosa!
Que frágil defesa contra o abismo!”
E o sol nasce e o sol põe-se.
E o sol nasce e o sol põe-se.
Enquanto eles correm e correm.

[Arredores afastados], 1991



Czeslaw Milosz (1991) – “A Criação do Mundo” in Alguns gostam de poesia, Antologia de Czeslaw e Wislava Szymborska, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2004, p. 76-79 (versão polaco-português).



boas leituras! @ri*

1 comentário:

Divinius disse...

A luz que te deixo é da cor da minha vida...)
Comenta o meu blog:)